O desafio do fogo em tempos de mudança climática

As condições que dão origem aos incêndios ditos “naturais” estão mudando

Artigo de Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

O fogo passou a correr em velocidade mais rápida que o homem pode percorrer. Uma colossal queimada de savana percorreu o estado de Rondônia em fevereiro, enquanto fogo de pradaria devorava a região de Amarillo, no Texas. A região de Valparaíso no Chile sofreu os mesmos efeitos devastadores, com as chamas percorrendo velozmente as encostas litorâneas e atingindo duramente as áreas urbanas.

A mudança climática está imprimindo características desafiadoras aos incêndios potencializados por tempos de extremo calor e seca. O evento ocorrido no Havaí, no ano passado, mostrou o quão devastador e letal podem ser a velocidade e a intensidade dos incêndios em áreas rurais com proximidade de centros urbanos. Assistimos também essa força devastadora no Pantanal, onde grandes áreas com rica biodiversidade foram sacrificadas.

Assim, as condições que dão origem aos incêndios ditos “naturais” estão mudando. Os incêndios do Antropoceno ocorrem com altas temperaturas, secas intensas e ventos fortes.

Cada vez é mais importante tratar os incêndios de forma preventiva. O primeiro passo é não permitir o estopim. É preciso mudar a “cultura do fogo”, com a qual o homem brincou impunemente por séculos. Facilitar “limpeza” com fogo, por exemplo, para plantio da macaxeira em Rondônia, ou das pastagens no Pantanal, se tornou inaceitável. É um elemento perigoso e sem perspectiva segura de controle.

Em Rondônia, durante o mês de fevereiro, foram contabilizados cerca de 2 mil focos de incêndio provocados especialmente pela limpeza de terrenos para facilitar o plantio de soja. Os efeitos foram severos, atingido unidades de conservação e terras indígenas.

Tardiamente, a operação “Verão Seguro” suspendeu o ciclo oficial de queimadas. Wilson Jordão, diretor de Monitoramento e Controle Ambiental da Fundação Estadual de Meio Ambiente e Meios Hídricos de Rondônia, orientado pelo corpo técnico da instituição, veio à público para dizer que “a partir de agora está proibida a autorização de queima até que haja uma melhora relacionada a esse fenômeno”, referindo-se às condições climáticas de seca. Afirmou ainda que o monitoramento diuturno e campanhas educativas serão intensificadas.

Falar em autorização para queimadas no atual cenário é autorizar fogareiro em paiol de explosivos. A escala dos impactos de incêndios nesse tempo do Antropoceno foi ampliada. Impactos ecossistêmicos e para além de biomas regionais estão se tornando palpáveis. A intensidade torna a poluição dos incêndios mais tóxica e pode provocar efeitos adversos no longo prazo para a saúde pública.

Embora os níveis mais elevados de poluição ocorram perto de um incêndio, alguns poluentes têm longa vida fotoquímica e estão sujeitos a transporte de longo alcance, com impactos trans e intercontinentais, podendo afetar a qualidade do ar a milhares de quilômetros. Foi o que ocorreu recentemente com Nova York, Manaus e São Paulo.

A região de Nova York se viu mergulhada em material particulado, fumaça e fuligem oriundos dos incêndios das florestas do Canadá. Os danos para a saúde pública foram elevados, afetando principalmente crianças e idosos. O mesmo aconteceu em Manaus.

São Paulo já experimentou, em escala acentuada, o fog (nevoeiro denso) proveniente de queimadas na região Amazônica. A célula de Hadley, mecanismo terrestre de transposição atmosférica, funciona em ciclo fechado carregando umidade especialmente entre o Equador para os trópicos de Capricórnio e de Câncer. Beneficia o continente sul-americano com a evapotranspiração da Amazônia garantindo regularidade pluviométrica continental. Com as queimadas, tornou-se também canal para fumaça e poluentes associados.

Felizmente existe tecnologia global para realizar o monitoramento de queimadas e a transposição de suas massas poluentes. Em que pese as chamas estarem consumindo florestas, savanas, planícies e regiões de cerrado, o Monitoramento Global de Incêndios do Serviço de Monitoramento da Atmosfera Copernicus os identifica como “incêndio florestal”, termo genérico para descrever incêndios ativos em diferentes tipos de vegetação e biomas, detectáveis por satélite.

Serviço de Monitoramento da Atmosfera Copernicus (CAMS) permite monitorar, além das emissões, sua composição e deslocamento atmosférico, podendo ainda prever a direção em que a fumaça se moverá.

Observando as cartas globais de áreas com maior temperatura e insolação do planeta, vemos que as áreas equatoriais prevalecem. No entanto, nossa época tem sido implacável com as florestas boreais setentrionais. Em agosto de 2023 o monitoramento do Copernicus reportou: “O Hemisfério Norte tem visto uma atividade significativa de incêndios florestais desde o início de maio deste ano, com incêndios recordes generalizados no Canadá e grandes incêndios em todo o leste da Rússia”.

As emissões de carbono dessas imensas queimas não são dimensionadas em inventários de emissões de gases efeito estufa. Os Índices Nacionalmente Determinados (INDCs), levantamento burocrático de emissões realizadas por países dentro dos compromissos do Acordo de Paris, não contemplam emissões por causas naturais, portanto as previsões que sustentam o estado de arte e prognósticos para mudanças climáticas não contam adequadamente com dados extremamente importantes para o cômputo global, em que pese a significância de suas dimensões.

Dois mil e vinte três foi o ano mais quente da história moderna e proporcionou profundo estado de secas ao redor do mundo.

Trocando em miúdos, a situação se reveste de maior gravidade. Às emissões da queima de combustíveis fósseis somam-se as emissões dos incêndios, com causalidade fortemente estruturada no aquecimento global, que por sua vez vê-se agravado em processo de intensa retroalimentação.

A lacuna existente na metodologia utilizada globalmente pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), subestimando do computo de emissões líquidas nacionais as emissões ditas “naturais”, nos levam a questionar não apenas a atual metodologia utilizada para estabelecer as metas nacionais e globais, mas também o que realmente deveria ser, no Antropoceno, considerado como emissões naturais ou antropocêntricas.

“Se não sabemos o estado das emissões hoje, não sabemos se estamos cortando as emissões de forma significativa e substancial”, disse Rob Jackson, professor da Universidade Stanford e presidente do Global Carbon Project, uma colaboração de centenas de pesquisadores. “A atmosfera, em última análise, é a verdade. A atmosfera é o que nos importa. A concentração de metano e outros gases de efeito estufa na atmosfera é o que está afetando o clima.”

Estamos em tempos em que causas naturais se entrelaçam com alterações humanas, em sinergia evidente. A incidência do El Niño sobre um planeta cada vez mais quente, em função do aquecimento global causado por atividades antrópicas, segue tendência crescente desde o início da era industrial.

Terra, Fogo, Ar e Água, os quatro elementos naturais elencados por Empédocles no século V a.C., estão conectados de forma desafiadora no Antropoceno. Em nosso tempo, chamas impulsionadas por turbilhões de ar devastam cada vez mais a terra seca.

A metodologia de alertas precoces defendida pela ONU para eventos extremos deve ser ampliada para contemplar os incêndios em aspectos preventivos, de detecção e resposta. A “cultura do fogo” se tornou inaceitável e formas sustentáveis de manejo do solo para agricultura devem ser adotadas. De outro lado, a contabilização dos eventos ditos “naturais” deve ser revista para a quantificação correta e dimensionamento para contenção das emissões nacionais e global enquanto gases de efeito estufa (GEE).

Será preciso superar o desafio do fogo.

Informações: Diplomatique.org

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